quarta-feira, 26 de julho de 2017

Contos: A frieza de um assassino



" Olhou no fundo de seus olhos negros e assistiu, atônito, qualquer resquício de vida deixá-los. E sentiu prazer nisso. "




" Mil anos e um assassino atrás:
Limpou o suor da testa com as costas da mãos, sentindo sua pulsação finalmente se estabilizar. O sangue da última morte causada ainda escorria da lâmina de sua espada e a dor resultante do embate começava a se espalhar pelo corpo. Costumava acreditar que havia algo de masoquista em todo assassino por contrato, pois a dor que sentia após uma luta era uma das melhores sensações que conhecia. Talvez não conhecesse muitas sensações boas, ou talvez as canções estivessem certas e todo homem de sua terra natal possuía a marca de um deus qualquer do mundo inferior que lhes deturpava a alma. Ao pensar nisso um esboço de risada fez desaparecer a expressão feroz em seu rosto marcado pelo tempo e pelas cicatrizes de batalha. Sabia que as canções só serviam para assustar crianças e amedrontar mulheres das tribos vizinhas. Sabia também que, de fato, a maior parte dos assassinos deste continente vinham do mesmo lugar. Nos outros continentes, se é que existiam, só os deuses saberiam dizer. Porém acreditava que isso se dava mais pelo ouro e pela glória do que por qualquer baboseira pagã. Depois de duas décadas sobrevivendo do infortúnio de terceiros, seu único deus era a morte. Limpou a espada, devolveu à bainha e seguiu viagem. Apenas parte de seu contrato estava completa e tinha algumas horas de caminhada pela frente. Não acreditava em almas deturpadas, não queria ouro e nem glória. Entrou na carreira por uma mulher. Aos 17 anos conheceu aquela a quem apelidou "anjo", mas que poderia ter sido chamada demônio com a mesma facilidade. Ingênuo e enfeitiçado pelos encantos da moça, lhe prometeu tudo que seu coração desejasse, inclusive, seu primeiro contrato. Ela queria livrar-se de um pretendente escolhido por seu pai e usou o rapaz para alcançar seu objetivo. Quando retornou trazendo a cabeça do pretendente para presentear a amada foi desprezado pela família da moça que não daria sua mão em casamento a um assassino. Após receber o mesmo tratamento de repúdio de sua própria família, não teve outra escolha senão seguir pelo caminho que iniciara pelos motivos errados. Agora, vinte anos mais tarde, não se imagina fazendo qualquer outra coisa. Depois de tanto tempo é impossível não se tornar conhecido no ramo, os contratos chegavam até ele em quantidades absurdas e ele aceitava quase todos. Como resultado, tinha mais riquezas do que poderia imaginar, mas quem o visse por aí, nas tavernas e bosques, jamais perceberia isso. Trajava-se de maneira simples com uma armadura comum que não ostentava qualquer símbolo que o identificasse carregando apenas sua espada e uma bolsa de couro onde mantinha alguns poucos pertences. Alimentos, algumas moedas, um colar que foi da mãe e um retrato mal desenhado em um pedaço de linho da primeira e única mulher que desejou. Não que guardasse qualquer vestígio de sentimento pela moça, apenas agradava-lhe lembrar o quão longe tinha vindo desde então. Pegou um atalho pela floresta. As sombras projetadas pelas copas das árvores não lhe assustavam como quando era um menino. Na verdade, havia algo de familiar nelas, sentia-se bem ali. A última vítima do seu mais recente contrato morava logo depois do fim da parte norte da floresta, antes do pôr do sol já teria completado sua tarefa. Seguiu seu caminho, ignorando as feras que já haviam se acostumado com a sua presença. Matou um coelho, o jantar estava garantido. Tinha a consciência tranquila, há muito deixara de se perguntar se suas vítimas teriam qualquer razão para merecer o que lhes aguardava. Agora, apenas se preocupava em cumprir com seu trabalho. Um riacho a frente. Coçou a barba feita rudimentarmente com uma adaga há alguns dias e percebeu os respingos de sangue seco que restaram do embate daquela manhã. Enquanto seguia para o riacho considerou que talvez aquele sangue não fosse seu. Sentiu um embrulho no estômago, mas ignorou, como já costumava fazer. Não se considerava um homem sem emoções, apenas alguém que sabia separar seu trabalho de sua vida pessoal. Não tinha vida pessoal. Sentimentos conflitantes beirando a culpa e o deleite ocuparam sua mente no resto da caminhada. O fim da trilha se aproxima, já consegue avistar a casa e, para sua surpresa, seu alvo lhe espera à porta de espada empunhada, a face estampando coragem. Pelo menos até ver seu oponente. A possibilidade de uma luta e não somente uma execução levantou os ânimos do assassino. Adorava quando eles tentavam. Tirou a longa e pesada espada da bainha, que segurava com a destreza de um deus, e seguiu para o combate. A luta foi acirrada por alguns minutos, bloqueou todas as investidas raivosas e mal calculadas do rival. Quando cansou dessa enrolação, projetou seu único e fatal golpe ofensivo. Sentiu a rigidez da carne do peitoral do homem se rasgando, a lâmina de sua espada atravessando seu corpo e ensopando suas vestes sangue. Olhou no fundo de seus olhos negros e assistiu, atônito, qualquer resquício de vida deixá-los. E sentiu prazer nisso. Não acreditava em deuses, não queria ouro nem glória, mas talvez, só talvez, sua alma fosse tão negra quanto diziam as canções. " -- Conto escrito pela brilhante  Karoline Brasil, que nos disponibilizou o conto para publicação em nome dela!
Quer que se conto apareça aqui ?
Envia pra gente e passará por revisão, caso passe será postado aqui com os devidos créditos  

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